quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Terminando a minha crônica do último domingo eu me referi a Ravel que, ao final da vida, dizia, como um lamento: “Mas há tantas músicas esperando ser escritas!” E acrescentei um comentário meu: “Com certeza o tempo não se detém para esperar que a beleza aconteça...” Disse essas palavras para mim mesmo porque naquele domingo, 15 de setembro, eu estaria “desfazendo” mais um ano: 69! Escrevi meu texto no meio da semana. A vida é como a vela: para iluminar é preciso queimar. A vela que ilumina é uma vela alegre. A luz é alegre. Mas a vela que ilumina é uma vela que morre. É preciso morrer para iluminar. Há uma tristeza na luz da vela. Razão porque ela, a vela, ao iluminar, chora. Chora lágrimas quentes que escorrem da sua chama. Há velas felizes cuja chama só se apaga quando toda a cera foi derretida. Mas há velas cuja chama é subitamente apagada por um golpe de vento... Como poderia eu imaginar que naquele dia preciso um golpe forte de vento iria apagar a chama do Dr. Escudero? Ele tinha um rosto de criança... Médico de projeção mundial, foi um dos primeiros a usar o lazer nas cirurgias de ouvido. O ouvido, o mais fascinante de todos os órgãos dos sentidos, era um dos mundos por onde ele andava com desembaraço. Desembaraço e competência. Competência e seriedade. Seriedade e bondade. Mas ele andava também por um outro mundo que não o do ouvido: o mundo dos olhos. Era pintor. Pintava quadros lindos! Quem visse os quadros que o Dr. Escudero pintava ficava tranquilo. Ele era um pintor de tranquilidades. Lembro-me de um quadro que vi no seu consultório: um caminho por entre campos e árvores. E ele me disse: “Caminho da peregrinação a Santiago de Compostela.” Era um amigo. Por isso vou deixar o “doutor” de lado: Escudero, simplesmente Escudero. Vez por outra aparecia no grupo de poesia “Canoeiros” que se reúne comigo às 3as feiras para ler poesia, tomar sopa com pão e vinho. Se o Escudero soubesse ele teria dito, como Ravel: “Mas há tantos quadros esperando ser pintados...!"
Mais que a minha própria morte e a morte das pessoas que amo, o que me dói é a possibilidade da morte prematura da nossa terra. Porque é certo que ela vai morrer. Tudo o que nasce, morre. O trágico será se ela morrer antes da hora, assassinada por nós mesmos, os seus filhos. Escrevi uma série de crônicas para as minhas netas, contando como era a minha vida de menino, na roça. A crônica de domingo passado foi a última. Escrevi para as minhas netas: avô contando estórias... Mas o divertido foi que aqueles que mais gostaram foram os velhos. Eles sabiam aquilo sobre que eu estava falando. Existe sempre a fantasia de que, num momento do futuro, será possível criar uma máquina que nos permitirá viajar através do tempo, da mesma forma como existem máquinas que nos permitem viajar através do espaço: bicicletas, carros, navios, aviões... Mas acontece que a dita máquina do tempo já existe. Só que ela não é feita com plástico e metais e nem é movida a gasolina. A máquina do tempo é feita com palavras. E ela se chama “literatura”. A palavra nos transporta através do tempo: ela nos faz viajar por mundos que não mais existem. E a prova de que estamos viajando pelo passado está em que “reconhecemos” os lugares por onde passamos e sentimos as mesmas emoções que sentíamos quando estávamos vivendo neles no presente. Agora estou preparando minha máquina do tempo para uma outra viagem. Entrei no livro O universo: seu início e seu fim (Lloyd Motz, The universe: its beginning and end, New York, Charles Scribner’s Sons, 1975) e comecei viajar pelo tempo. O livro me levou para 15 bilhões de anos atrás. A temperatura era da ordem de um bilhão de graus. Foi então que aconteceu a grande explosão, o Big Bang, com a qual o universo se iniciou. E pensando sobre esse evento fantástico enquanto caminhava – é preciso cuidar do coração – meus pensamentos foram interrompidos pelas sibipirunas floridas, o amarelo contra o verde das folhas e o azul do céu... E me assombrei de que coisas tão lindas e mansas tivessem nascido de uma explosão há 15 bilhões de anos... Do caos nasceram ordem, vida e beleza, da mesma forma como uma bolha de sabão sai, perfeita, do canudinho que o menino sopra... Aí fiquei com medo que a bolha estourasse antes da hora. Porque é isso, precisamente, que essa coisa a que damos o nome de progresso está fazendo. Todos os candidatos a presidente, todos, indistintamente, de direita e de esquerda, prometem “progresso”. Mas nenhum deles promete preservar a natureza. Qualquer menino sabe que a bolha de sabão é frágil. Não pode crescer sempre. Se crescer além do limite ela estoura. E nossa terra é precisamente uma bolha frágil que navega pelos espaços vazios, bolha onde apareceram, miraculosamente, as condições para que a vida viesse a existir. Mas, se essas condições desaparecerem, a vida deixará de existir. Muitas críticas justas já se fizeram ao capitalismo, de um ponto de vista ético, em virtude de sua tendência de produzir pobreza e concentrar riqueza. Mas raramente se fala sobre o capitalismo como um sistema autodestrutivo que, para existir e gozar saúde, tem de estar num processo de crescimento constante: mais empregos, mais trabalho, mais devastação da natureza, mais monóxido de carbono no ar, mais lixo – seis bilhões de quilos de lixo por dia! – mais exploração dos recursos naturais, mais florestas cortadas, mais poluição dos mananciais... Até quando a frágil bolha suportará?

Rubens Alves

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